Fado desventurado

11:46

Pela janela daquele quarto frio, esbranquiçado e impessoal, esquadrinhava um céu onde as nuvens se comprimiam. Ameaçava chover copiosamente. Lá fora, as pessoas precaviam-se com guarda-chuvas, casacos pesados e botas quentes. As crianças quase desapareciam debaixo dos gorros, dos cachecóis e das luvas coloridas.

Contudo, aquele era mais um angustiante final de tarde, pela imprevisibilidade do seu desfecho, pela saturação daquele impasse, pelo desgaste de vê-lo assim: enclausurado nesse corpo cheio de vida até há um par de dias atrás.

Estava já condenado à morte. Essa mesma que se fazia esperar, que exigia uma vassalagem desapiedada, que nos separava sem mediação. Estava já condenado à morte, sem qualidade de vida final, quando afinal ainda lhe faltava tanto para viver.


À volta dele, reinavam os esforços, os cuidados, as esperanças. Perguntava a mim própria, o que pensaria ele daquilo tudo. Se teria, ao menos, consciência da dimensão do que se passava.

Dependia dos outros. De todos. Por vezes, não tinha ninguém ali. Alguém que lhe pudesse minimizar as dores, mudá-lo de posição, trocar-lhe a roupa ou vigiar o saco do soro. Não conseguia comunicar à velocidade do seu pensamento (que até poderia ser desconexo ou inexistente). Havia lamentos rapidamente silenciados, lágrimas à socapa e saídas de emergência por detrás da cortina.

Os seus olhos vítreos incomodavam os meus, encostando as palavras às paredes da garganta, destabilizando a serenidade que lhe queria transmitir. Era duro vê-lo reduzido a uma ausência de si. Era atroz vê-lo acostado às margens da vida já sem forças.

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