Urbanidade em compasso binário

16:48

Por aqui, não preciso de olhar com atenção para os dois lados quando quero atravessar de um passeio para o outro, quase me basta usar os ouvidos. É que os carros não fazem das estradas, pistas de fórmula um. Não há urgências inadiáveis nem pressas desvairadas.

À despedida dos lençóis não se segue uma tensão matinal pelas filas intermináveis de trânsito, pelos condutores solitários que se atropelam em manobras para ganhar uns metros de avanço. Com relativa facilidade, o pão chega quente à mesa, enquanto na televisão se debitam as alternativas para melhor escapar às vias congestionadas por causa dos acidentes ou da chuva ou, apenas, da afluência em grande número.


Se o acaso nos cruza com os vizinhos, há sempre uma mão que segura a porta do elevador. Ao entardecer, avistam-se as bicicletas e os pontapés na bola. Subtilmente, os aromas das cozinhas misturam-se nos corredores do prédio. Os jantares em família acompanham o telejornal, entremeando com os relatos do dia-a-dia: o trabalho que ficou por fazer, as aprendizagens na escola, as sugestões de passeio para o fim-de-semana.

Nas horas tardias, uma parte de mim ambiciona o retorno ao bulício de outrora, à consulta frenético do relógio, aos corrupios para cumprir compromissos, à panóplia de semáforos e gente em stress, ao cansaço de desfalecer no sofá até ao dia seguinte. Nostalgias remordidas pelas maratonas, em passo lento, dos transeuntes das ruas estreitas e empedradas, vestindo pensamentos por partilhar. Mas o olhar enubla-se com os edifícios escuros, alguns devolutos, com os vestígios da poluição, com os rostos da pobreza, com essa miséria encapotada.

Então, afoito, o vértice da lucidez volta a nortear o marear. Afinal, gosto de sorver as cumplicidades, repetir as partilhas, beber os sorrisos, mimar os afectos, sentir a vida desformatada, fazer vénias inconsequentes ao tempo.

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