Indigências ignoradas

14:07

Tinha a garganta seca e mirava os dedos mirrados, nesse anoitecer quase vespertino. Os carros passavam. Os movimentos das luzes depressa o encobriam. A fome apertava. Em simultâneo, encolhia-se o pudor de vasculhar caixotes depositários do lixo alheio, dos desperdícios de todos.

Tinha as unhas sujas e olhava para o seu reflexo na montra da esquina. Nas suas costas, passavam as pessoas, cujos olhares rapidamente o ignoravam. A necessidade gritava dentro de si. Enquanto se debruçava para procurar os restos da cidade, pendiam lágrimas esfarrapadas.


Talvez a família estivesse em casa, falando de si, recordando-o. E ele num país estrangeiro, numa metrópole vendida como terreno fértil para granjear um regresso célere e próspero. A família à espera do dinheiro que não chega, passando dificuldades, sem mão amiga por perto. E ele, longe, vivendo o mesmo.

Talvez se veja obrigado a estender a mão, suplicando a caridade dos transeuntes, mas por agora, prefere vilipendiar a dignidade de outrora para conseguir um naco de pão carcomido, aquele pedaço de ontem que já não serviu para nós.

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