Empreiteiro de Sonhos Remotos

09:28

Os pés inquietos, debaixo da secretária de anos. O relógio a morder-lhe o pulso magro. Arruma a papelada, sem problemas de consciência pelo trabalho necessário que ficou por fazer. Desliga o computador, o seu mais recente camarada de ofício. Esgotam-se os cinco minutos para o passaporte da liberdade. 

Lá fora espera-o uma missão mais forte e útil do que este contributo diário à burocracia de um País à sombra da proactividade. Pela mão passam-lhe números de hectares, nomes, moradas, territórios que sem valor económico geram guerrilhas ao balcão e holocaustos em aldeias recônditas, marcando falatório das viúvas e desocupados. Discutem marcos, cultivam inimizades, colocam-nas em cima de laços de anos com quotidianos partilhados. Ele, à margem das discórdias rurais, dá seguimento à papelada possível, sem grandes pressas. A urgência bate no relógio às cinco da tarde.

Atravessando a ombreira da porta com tinta carcomida pelas invernias e calores aflitivos, acelera o passo até à carrinha. Atenção na estrada e desassossego no coração. Leva um compromisso selado consigo mesmo. Vai levar uma velhinha, de sorriso puro a sobrepor-se às mazelas que lhe acossam o corpo, a visitar a irmã, que mora a trinta e seis quilómetros da casa onde vive com o filho.

Enfiada na cama, a velhinha passa os dias com uma vigilante permanente, que se entretém com as revistas baratas que lhe emprestam os sucessos dos ‘vips’ para que se sinta um dia tão capaz de pertencer a esse universo. A velhinha tem um livro à cabeceira no qual não pega porque os dedos já não conseguem virar as páginas teimosas e talvez também tenha vergonha de não ver mais do que o esconde-esconde das letras entre tamanhos apertados. Ela passa os dias entre o vaivém de sonos tormentosos e dores lancinantes.

A televisão prefere-a desligada, mas a guarda inválidos não sobrevive sem ela. Cansa-a estar ali, desejosa dos dias de sol, da agilidade de correr atrás do filho, que agora crescido só chegará pela hora do jantar, exausto. Entra no quarto sempre com o mesmo registo. Pergunta-lhe se está confortável e despede-se a correr. Ela sabe que não é fácil para ele assistir, impávido e impotente, ao declínio daquela que um dia o embalou para o futuro, cheia de energia.

Hoje já não jogamos ao sério nem fazemos cócegas mútuas no sofá da sala enquanto vemos um filme domingueiro. Hoje não pode sequer pegar-lhe nos pequenos que correm pela casa, no corredor atrás do quarto, mas que nunca entram. Os lençóis sujos, os medicamentos perfilados, as dores a embater nestas paredes silenciadoras de gemidos.

Às vezes, pensa que os netos vivem com medo de passar sequer perto da porta. Hoje é um dia especial. Olha o relógio desde que acordou, às 4h 23. Tudo era mutismo descansado e preguiçoso e já os seus ossos padeciam e aclamavam misericórdia que não chegou pela manhã. Empurrou comprimidos e a sonolência de alguns. As pálpebras não deixaram de fitar o relógio da parede por um segundo e nem a televisão histérica a incomodou. Pediu para a colocarem no meu novo triciclo de duas rodas apenas. Fez 83 anos há dias.

Cresceu amada e viveu feliz. Agora, respira na estúpida incerteza de não ter conhecido a irmã alguns anos mais nova. Na época, recusou-se a inscrever esse facto na consciência e afastou para as margens a paternidade, entretanto foragida. Havia a presença solicitada e era o bastante para ela. Quando perdeu os que amou ao longo desta rota imprevisível, passou algumas noites com um sonho repetido: uma voz feminina, rouca e distante, chegava-lhe num eco dançarino que bailava à sua volta num simulacro de céu invertido. Soube, então, que tinha que a conhecer. Não contou ao filho, porque não compreenderia nem a ouviria mais do que dois minutos até atribuir à explicação fácil do devaneio. Vivia corroída com isso a coçar-lhe o peito por dentro.

Uma tarde, já no estertor do sol, chegou ele, a sua visita semanal. Sempre bem-disposto, sereno, sem pressas, com vontade de conversar e trocar silêncios. Ela, por curiosidade, perguntou-lhe o que fazia a seguir ao trabalho, que abominava. Respondeu-lhe com estas palavras estendidas num grande sorriso: ‘sou empreiteiro de sonhos’. Ela quis saber mais, perceber em que tal consistia. Ele mostrou-lhe o bloco, onde anotava os desabafos das pessoas com quem convivia ou meramente conhecia. Não tinha datas à frente nem critérios de prioridade. A medo acrescentou o seu sem permissão. Disse-lhe que no amanhã depois de amanhã viria buscá-la.

Finda a expectativa, vestiu-se e olhou-se ao espelho triste. Virou costas e levaram-na até ao jardim para a sombra, só com os pés ao sol. Avistou lá ao longe a carrinha dele. Parou mesmo à porta e ajudou-a a entrar. Não houve palavras suspeitas apenas a desculpa de “uma pequena volta na estrada”, porque ela sempre gostou de viajar. Ele descobriu o paradeiro da irmã e não lhe contou nada sobre as peripécias de tal conquista.

Chegados ao destino, o momento seria só entre elas. Ele, cá em baixo, depois da porta se encerrar, fumava um cigarro encostado à carrinha. Pelo retrovisor, vi-o emoldurado numa felicidade que não sendo sua lhe pertencia em pleno. Ele entrava na vida de quem tinha sonhos inconfessáveis, porque pueris, porque orgulhosos, porque fúteis, porque extravagantes. E saía de mansinho nos finais felizes.

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