Chão firme

19:34

As turbulências podem ser muitas. Os ventos podem soprar ferozes. As embarcações podem revelar-se frágeis. As coordenadas podem estar incorrectas. Os ancoradouros podem até não passar de miragens. O importante é que os companheiros de viagem estejam lá: de braços fortes e coração aberto.

É assim que, mesmo perante as ameaças e o medo de não conseguir sobreviver aos sobressaltos, se vive em alto mar. Não sou “encartada” como um amigo que tenho em Leça da Palmeira, mas sei que a minha intuição não me deixará desviar dos pontos cardeais.

Hoje foi mais um dia de navegar em águas calmas, com o horizonte a perder de vista e o farol ao longe para me lembrar que amanhã é para regressar. Hoje foi dia de esquecer os velhos do Restelo que, assiduamente, me acenam sarcasticamente. Hoje foi dia de puxar pela rede à volta do coração e partir confiante.


Não houve desânimo, desespero, desilusão, desesperança ou solidão. Ao marear, chegou uma suave brisa de orquídeas e um aroma a café vespertino. Levei uma mão-cheia de cartas, honrando os bons velhos tempos em que essa era a única forma (quiçá a mais fiável) de comunicar com quem se queria bem.

Eis que a felicidade me foi chegando nessas folhas de papel imaculado. Tingidas com palavras doces, recuperações mnemónicas, vivências nas entrelinhas e as emoções a servir de margem. Soube-me bem saber boas novas do Minho, de Bragança, de Lisboa e do Porto, reviver as vizinhanças daquela praceta com água a correr e o abraço apertado do qual não queremos desamarrar-nos.

Ali, ao leme, não podiam faltar os desvelos maternais, o orgulho paternal e a força da irmandade. Na proa, houve risota à socapa, ternuras e mimos vários, olhares profundos e gestos simples, cumplicidades partilhadas e a sombra daqueles que estão longe e se sentem mesmo ao lado.

No fundo do mar repousa uma gratidão silenciada e uma alegria indizível, enquanto repesco as palavras de Ricardo Reis: “a realidade / sempre é mais ou menos / do que nós queremos / só nós somos sempre / iguais a nós próprios”. Agora, ao olhar o breu pontuado de estrelas, sinto os pés em chão firme e volto a sentir-me não mais do que uma miúda com sorte por nunca se afastar da rota dos (re)encontros.

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