O catraio e a bola

07:56

São 9h30 quando enfia as chaves na porta do escritório. Passeia a pança enquanto carrega o portátil. Segue sem que alguma inquietude lhe belisque o pensamento. Todos os dias, faz o mesmo percurso. Há anos que vive no conforto dessa linearidade.

Ao fundo da encruzilhada de corredores, há energia pontapeada contra a bola. O corpo de menino a expulsar uma vivacidade contrária. Às 18h30, ele continuará a correr de um lado para o outro, fintando adversários imaginários, simulando faltas, atirando-se ao chão.

No escritório, o morno ronronar dos computadores é contagioso. Perante as tarefas rotineiras, a monotonia enfadonha não passa de uma apatia inconsciente. Move-se devagar entre as estantes repletas de arquivos. Os dedos folheiam os documentos sem ansiedade.

Por entre as muitas lojas vazias, ele conduz a bola e vai pedindo o apoio do público. A emoção de dominar o esférico desassossega-lhe os pés. Jogadas brilhantes que ninguém vê nem aplaude. E é assim que ele, o catraio que causa o alvoroço naquele submundo, brinca com a sua solidão.


No final da jornada de trabalho, tranca a porta, incomodado pelos ecos da diversão infantil. Amaldiçoa as traquinices não repreendidas. Haverá alguma nostalgia naquele esgar endereçado ao pequeno? Alguma vez terá extrapolado as barreiras da realidade para uma infância feliz? Afasta-se taciturno, no mesmo passo desacelerado.

Indiferente, o petiz continua a ensaiar mais umas acrobacias: roda o corpo, estica a perna, domina uma alegria muito própria. Quando a mãe espreitar à porta do cabeleireiro e lhe disser “são horas de ir para casa”, o catraio agarrará a bola gasta e sorrirá, porque, afinal, foi eleito o melhor jogador em campo.

You Might Also Like

0 apontamentos

Total de visualizações

Procurar no blogue