Vislumbre indesejado

16:45

Bastou essa nesga por entre um braço paralelo ao tronco, sem o tocar, e o intervalo entre esse corpo e o corpo contíguo. O meu campo de visão recortado por essa moldura aleatória, enquanto o pensamento vagueava por entre intenções imediatas e planos longínquos.

Vi, então, aquele ajeitar do lenço negro. De repente, bateladas emotivas. Enxotadas à pressa, com o mesmo ímpeto de quem cerra os olhos com força quando se quer dormir sem ter vontade ou cansaço que o justifique.

O gesto de levar a mão à cabeça foi tão parecido com o teu. Não reparei na idade dos dedos nem lhe vi o rosto. Contudo, adivinhei-lhe cabelos frágeis e brancos como os teus. Percebi-lhe o hábito de fazer aquilo com a mesma naturalidade que me habituei a observar em ti.

E todo o dia, aquela imagem a girar sobre um lenço preto. Esse adereço cada vez menos utilitário, cada vez mais raro. Esse pedaço de pano a prender-me a atenção e a consciência de ainda sentir saudades.


Noutras épocas da vida, presumo que o lenço que usavas tenha sido colorido, com motivos florais, às riscas ou com outros desenhos tingidos. Certamente que ajudava a segurar os cabelos vigorosos, de uma cor que já não cheguei a conhecer. No tempo que partilhámos os sorrisos, existia, por debaixo do lenço, uma trança enroscada para esconder o verdadeiro comprimento do cabelo esbranquiçado.

Lembro-me bem como o colocavas no regaço para alinhar o seu formato triangular, como, de seguida, o voltavas a colocar sobre o cabelo, como erguias os braços ao mesmo tempo, na direcção da nuca, como davas o nó. Sempre que o passar das horas e o fulgor das tarefas a executar exigiam, puxava-lo e quase cobrias os olhos amendoados. Deixava-lo novamente rente à testa.

Hoje, recordo esse gesto insignificante, observado numa pessoa anónima integrada numa assembleia de desconhecidos voltados de costas. Hoje, recupero esse gesto tão teu. Hoje, a nostalgia voltou a ser repuxada com o lenço preto.

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