Cultos perenes

16:59

Sempre gostei de rituais. Da sua força. Da sua certeza confortável. Ou apenas da sua previsibilidade num mundo amotinado. Sim, reparo quando algo está desviado um milímetro que seja do seu sítio habitual ou se alguém quebrou uma costume subentendido.

Gosto da forma como a toalha rendada é colocada sobre a pequena mesa, ainda com as dobras da gaveta vincadas. Das molduras, de vários tamanhos, perfiladas nessa ordem com que me familiarizei. Dos postais depositados no fundo da caixa de latão vermelho. Da cama feita e com as almofadas alinhadas quando vou descansar. Do rodar da pequena chave no almanaque pessoal. Do peluche desbotado, companheiro de longos sonos, ficar do lado esquerdo.

Do chocolate quente, intenso, sorvido à lareira, em família. Das bolsas dos guardanapos com o nome bordado ou das pantufas gigantes que nos ofereciam. Da tarde solarenga no terraço. Das dedicatórias nos livros encostados na prateleira intermédia. Dos brindes a quatro mãos. De sentir a areia debaixo dos pés nessa praia da infância. De preparar tudo para bem receber as visitas . Do afastar das saudades com memórias sépia.

Há em todos estes gestos repetidos, uma escassa esperança de não notar e de não consciencializar a dimensão crescente dos vazios. Embarcamos em novas aventuras, por bons motivos, por necessidade ou inevitabilidade. Mais tarde, acabaremos por ficar prostrados a pequenos momentos, a partilhas cúmplices, às emoções espontâneas.

Daí para a frente, queremos que aquele dia, aquele lugar, aquele cerimonial se conserve em tudo igual: nos detalhes, nos sentimentos, nos preparativos, nos comportamentos, na envolvência interior. Mas a atitude, essa, já mudou e quase nem demos conta.

Giorgio de Chirico

You Might Also Like

0 apontamentos

Total de visualizações

Procurar no blogue