Filiações

13:48

Hoje foi como se tivesse sido tarde de fim-de-semana. Houve leite sem nata, mas com chocolate e o lanche espalhado em cima da manta do escano.

Como sempre, tu ficaste do lado esquerdo, quase entalado entre a parede branco sujo e a chaminé. Mas hoje não fez frio e não precisaste de mexer no lume.

“O que queres?”, perguntei-te, conhecendo já a resposta.

“O mesmo que tu.”

E o manjar voltou a nascer com brio e aprumo. Foi um verdadeiro banquete para apetites tão sumidos. Voltámos a acertar na quantidade excessiva de açúcar e na escolha das canecas desiguais.

Vi-te os lábios a arrefecer o líquido e ouvi-te a rir de forma distinta. Voltámos a estar sozinhos em casa, simulando o secretismo e o ar cúmplice que precedem a preparação das grandes partidas.

Hoje, ela não apareceu. Não ouvimos o seu ripostar para disfarçar a alegria de perceber a nossa harmonia e a nossa boa disposição. Mas, ainda assim, puxámos do baralho e misturámos as cartas.

Relembrei como aprendi a fazer batota e o momento em que, muito mais tarde, de contei. Eu via o reflexo dos trunfos que tinhas na mão nos teus óculos castanhos e tu nem desconfiavas. Vivia as vitórias com euforia, enquanto manifestavas um descontentamento que, no fundo, não existia.

Esta tarde, voltei a ter-te aqui e lanchámos à moda antiga.

Um dia, terei cabelos brancos como tu, estarei encostada num banco como tu e também terei vontade de ter companhia. Mas será que, tal como tu, vou ter alguém que goste de comer torradas de pão caseiro ou sandes de grossas fatias de queijo e que, de seguida, queira jogar à bisca e aprender os truques para ganhar?

Quando esse dia acontecer, vou continuar a lembrar-me dos detalhes do teu rosto com a mesma tristeza de já não existires para além das minhas memórias dessas tardes felizes.

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