Estrépitos abafados

15:19

Ele gostava de desmontar campainhas. Achava que, assim, contribuía para um mundo menos cacofónico. Aliás, por um regresso à normalidade imemorial. Afinal, não é suficiente bater à porta e ouvir aquela pancada seca na madeira ou no alumínio?

Aqui, sempre foi assim. Porquê, agora, esta modernice? Fazia-o à socapa. Esperava pelo cair da noite, quando quem chegava do campo recolhia às suas casas, na esperança de um caldo robusto antes de se estirarem no escano para um serão tranquilo.

Ele pegava nas ferramentas. Enfiava-as nos bolsos largos das calças de vincos ou no interior da jaqueta. E, noite após noite, ia desligando esse bicho barulhento, qual grilo artificial colocado na soleira da porta.

Aqui, sempre foi assim: bater com as nozes dos dedos contra a madeira gretada da porta ou chamar pelo dono, espreitando pelo postigo. Porquê, agora, esta modernice? Era uma revolta emudecida e secreta.

Ele tinha passo firme e poucos pensamentos. Gostava da tagarelice dos serões à lareira ou ao fresco nas noites abafadiças do Verão. Desejava viver naquela harmonia sem ambicionar conhecer outros mundos.

Aqui, sempre foi assim: tudo o que é essencial está ao alcance das duas mãos ou das mãos dos vizinhos. Aqui, começam e acabam os limites do seu mundo. Aqui, revê os rostos de gentes sofridas, cansadas, humildes, mas serenas.

Ele cavava a tira de terra por detrás da casa abandonada ao cimo da rua para enterrar as campainhas. Nunca foi percebido nem tão-pouco levantou qualquer sombra de suspeita.

Depois de substituírem as campainhas roubadas uma, duas, três vezes, os habitantes desistiram. Pensaram que seria a vontade de Deus. Afinal, ela era que regia o seu quotidiano, as duas vidas. Se há sol ou se cai chove, se os filhos se lembram de ligar ou se aparecem de surpresa, se as batatas crescem fortes ou se os feijões não conseguem medrar, se as ovelhas encontram o que comer no campo ou se a porca pariu sem complicações. Tudo a Ele se deve.

Aqui, sempre foi assim. Tudo se encaixa na mesma monotonia dos afazeres, dia após dia, sem tormentos de almas inquietas. Há uma felicidade que maximiza a simplicidade. Mas, por quanto tempo continuará a ser assim?

Ele sabe que dure o que durar, não soarão campainhas quando alguém se quiser fazer anunciar. E só tem medo do tempo em que as casas se vão tornar espaços vácuos e em que ninguém se assome para perguntar se pode entrar.

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