Par solitário

05:13

Sobre a cabeça, um chapéu castanho de mel a proteger uns óculos antiquados, de lentes escuras, daqueles perfeitos para esconder a alma dos olhos. O pescoço esguio repousa nesse banco almofadado. Ao lado, um colar de pérolas falsas sobre um peito cansado, desses que abafa suspiros e cala lágrimas. Segura a carteira coçada no regaço, outrora refúgio de pequenos corpos.

Ambos têm cabelo aguado, prenunciando muitos dias vividos. Terão sido intensos? Será que escondem belas histórias nos folhos da memória enfadada? Terão sido sonhadores? Será que voaram sobre as coisas banais e mergulharam em profundidade nas coisas do coração?

Agora, coleccionam horas em branco, horas sem fim. Olham em frente, sem despegar. Mas, em frente, recorta-se uma banca de livros, onde se impinge falsa literatura a preços de saldo; um grupo de miúdos a pedalar carrinhos e a causar chinfrim; o ininterrupto vaivém do entra e sai das lojas; pessoas sentadas, alheadas do mundo. O que verão aqueles olhos meigos? Por que estarão ali? E assim, tão inexplicavelmente serenos e, ao mesmo tempo, tão solitários?


Afinal, o que sobra quando abandonamos a vida activa e deixamos os filhos abraçar o mundo? O que fica dos medos, das conquistas, das aprendizagens, das frustrações, enquanto esperamos pelos netos a quem ensinaremos o que nunca esquecemos?

Quando caminhamos, a cada dia, para menos horas de vida, o que significará uma tarde, no shopping, a ver passar desconhecidos? Será tão-somente sentir a companhia de alguém que continua a partilhar da mesma perspectiva?

You Might Also Like

0 apontamentos

Total de visualizações

Procurar no blogue