Cismas taciturnas

18:07

A noite precipita-se sobre a tarde. É assim nesta antecâmara do Inverno. A árvore que tenta chegar à janela do meu quarto já se pintou de todas as tonalidades de castanho. Eu prefiro as folhas desse castanho avermelhado, pois reacendem a nostalgia do tempo quente, das emoções a fervilhar, da ternura aquiescida.

imagem retirada da Internet

Agora que a noite caiu e as persianas se fecharam a esse mundo enegrecido, permaneço à janela. Espero ver-te chegar por entre as memórias difusas dessa época. De olhos abertos e coração golpeado, preciso de sentir-te pelo menos aí, nessa meiguice de quem acorda naturalmente sorridente nas manhãs de segunda-feira.

Sinto os pés enregelarem-se dentro das meias de lã. Meto as mãos dormentes nos bolsos. Nunca te esperaria assim, neste desleixo de final de dia, se tivéssemos combinado encontrar-nos presencialmente. Mostrar-te-ia o meu melhor sorriso, mesmo que já quase me tenha esquecido do sítio onde o deixei.

A luz do candeeiro da rua não treme com o vento. Os carros circulam fora de horas. Um cobertor de folhas secas cobre pedaços de chão. O vizinho da frente já fumou o último cigarro. O camião do lixo aparece para fazer barulho. E tu demoras...

Sim, podemos passear nessas margens como antes. Havia felicidade nesses passos paralelos por se imaginarem companheiros nessa viagem pela vida. Sim, voltaremos a conversar com deslumbramento sobre as coisas encantadoras e com ar depreciativo sobre as indelicadezas que, concomitantemente, nascem das mãos dos homens bons.

Chegas finalmente. Abraço-te despreocupada. Rimos para esconder os vazios dos gestos repetidos. Depois, seguimos esse percurso familiar. Falamos do que temos feito com os dias e daquilo que eles não têm feito connosco. Lamentamos o infortúnio de abandonar sonhos que criámos como filhos. Perspectivamos esperanças com uma resignação que não é a nossa. Olhamo-nos por um instante e deixo-te partir. Ou talvez eu não queira ficar.

Começa a chover nesta rua despovoada. Nómadas de nós, regressamos a casa. Há essa escuridão agonizante de um céu sem estrelas. De braços finos e desnudados, a árvore bem se esforça por espreitar o meu quarto. Mas eu continuo a olhá-la em plano picado. 

Entre a cortina que se desvia e a porta que se tranca, sinto-a incisiva e perene. Vem aninhar-se à minha beira e é já enorme. Adormecerá de mansinho? Duvido...

Será minha esta dor esquisita, inquinada, enlutada? Ou será o reflexo da tua angústia que não vejo, do teu olhar triste à janela que não conheço?

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