Missiva ao passado

08:58

Hoje, apetece-me escrever-te. E faço-o com a mesma fúria dissimulada do momento em que peço o livro de reclamações em repartições públicas. Hoje, apetece-me escrever-te com letras arredondadas e em maiúsculas para que não haja dúvidas de que a minha desilusão não se fica apenas pelas entrelinhas. Hoje apetece-me escrever-te sem reler o que está para trás. Pode ser que, assim, percebas que cada falha, cada repetição, cada incongruência seguem tingidas de ódio irracional. 

Não faças essa cara de incompreensão perante o que lês. Não faças esse olhar incrédulo quando encarares estas palavras de esguelha. Não encolhas os ombros nem laves as mãos nessa água mitificada. Não rasgues o papel. Não te escondas por detrás dos contornos menos nítidos. Não te justifiques com a miopia ou com a tua idade avançada.

Volta aqui e já. Repara nos estragos que nos fizeste, nas construções que fizeste ruir à nossa volta. É triste que nem os pilares conseguiste poupar. Repara bem no somatório de decepções em que nos enrodilhaste o coração.

Porque escreveste, afinal, uma história tão tortuosa e infeliz para duas personagens que não queriam honras de protagonismo dramático. Teríamos ficado contentes por passar despercebidas ao longo das páginas, sem causar danos ou picos de emoção. Teríamos mantido essa esperança de poder chegar ao fim e testemunhar um final feliz.

Porque nos massacras com desilusões, mágoas, vazios e frustrações consecutivas, contraditórias, tão distantes dessa amálgama de esperança ridícula e optimismo desbotado? Porque não nos poupas a um futuro dilacerado, enclausurado nessas linhas estreitas com que aprisionas os nossos sonhos? Porque não colocas, de uma vez por todas, o derradeiro ponto final? Ou deixa-nos encurraladas num parênteses? Porque nos deixas acreditar que alguém vai gostar de ler a nossa história, que alguém vai sorrir no final ou sentir-se inspirado pelos nossos comportamentos?

Porque não merecemos essa paz de presente, feita da luz que vimos esta manhã quando puxámos a persiana? Porque não usufruímos dessa serenidade de neblina que descerra a tarde fria? Porque não nos deixas, enfim, sentir essa liberdade de sermos indiferentes aos teus tentáculos?

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