Cair em desuso

04:21

Este é um texto escrito com vagar, numa velha máquina de escrever. O desuso imprime-lhe uma antiguidade forçada e um saudosismo inusitado.

O barulho dos ponteiros do relógio da cozinha e o som das letras metálicas contra a folha de papel povoa m este silêncio. As teclas obrigam a um peso suplementar quando se carrega em cada letra. A ordem dos caracteres não é igual àquela a que me fui habituando depois de encostar esta máquina num canto do sótão, enfiada numa sacola quase nova. Por isso, é recorrente enganar-me. Quando quero escrever “a” e sai-me “q”. É um erro que se repete amiúde.

Tento calcar cada tecla com a força suficiente para que as palavras fiquem bem vincadas no verso de uma folha já utilizada. Chego a pensar que este é um momento quase histórico, talvez romântico até. Dactilografar neste tempo amolecido por computadores, tablets, telemóveis 3G.

Conforme escrevo cada linha, recupero o respectivo sinal sonoro. O parágrafo fica por minha conta, é da minha inteira responsabilidade. O mesmo acontece com a translineação ou com as letras em caixa alta.

Mesmo que precisasse do símbolo do euro não podia usá-lo. No tempo desta máquina de escrever, ainda só se conhecia o escudo. De vez em quando, como que a pontuar a cadência do meu pensamento ou o ritmo da minha intencionalidade expressiva, ouço o barulho da barra de espaço. E, mesmo agora, tive de puxar a folha atrás para colocar uma vírgula.

Antes, era preciso escrever com esmero e atenção para que o texto acabasse sem exibir qualquer mácula. Longe dos sublinhados vermelhos e verdes do Office, tentava-se obter um texto corrido, sem X a denunciar erros.

Imagem retirada da Internet

Apeteceu-me mudar o espaçamento entre as linhas e surpreendeu-se saber ainda qual o botão destinado para o efeito. O mesmo aconteceu com o ritual de destravar a máquina, alinhar a folha, definir as margens e começar a escrever.

Eis que recupero as horas que passei a gastar as pontas dos dedos nestas teclas agora prontas a estrear. Na altura, alternava as cores. As opções estavam reduzidas ao essencial: preto e vermelho. Penso em experimentar agora mesmo: gosto tanto desta cor.

Guardo um profundo respeito pelos objectos que marcaram o meu passado. Procuro preservá-los de forma a que nunca percam a dignidade para que foram concebidos. Neles permanece tanto de nós, tanto da matéria-prima de que ainda somos feitos.

Ficam horas, dias, meses, anos, esquecidos nesse sótão onde sempre voltarei para nunca me esquecer que há um prazer minimalista, sereno e completo quando, através deles, voltamos atrás no tempo.

À medida que cada letra beija rapidamente a página em branco, sorrio discretamente.

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