Feições esmeradas

16:22


Gosto das muralhas que envolvem o que dizes sentir por mim. Prefiro imaginar tudo o que fica (e se ganha) nesses vaivéns de silêncios confortáveis que temos partilhado.

Existem os teus olhos a fixar um qualquer ponto para além dos meus e o teu sorriso, que confundo como espelho do meu. Então, o tempo apanha boleia com as palavras que trocamos recorrendo à cábula improvisada. E tudo flui. Perfeitamente.

Uma sensação de que nada falta para sermos brindados com a felicidade, mas será que a sentimos ou apenas consciencializamos uma ilusão dos seus retalhos?

Não nos interrogamos. É suficiente o calor que me entorpece a alma quando deixas a descoberto as esculturas do teu coração. Não te rias!

Evidentemente que não são esculturas frágeis como aquelas que vemos na praia, em pleno Verão. Estas que vejo são talhadas durante anos pelas mãos de amigos, namorados, familiares, colegas, desconhecidos.

Algumas resistem na sua estrutura, outras vão-se desgastando com a erosão das ausências pontuais, dos descuidos continuados ou dos esquecimentos forçados. Em menor número, há algumas desfeitas na sua integridade. E no meio dessas esculturas todas, vejo um lugar quase plano. É aí que tenho trabalhado na minha escultura, que um dia será apenas tua.

Sem esboço, fui criando-a livremente e com sentido utilitário. Mais tarde, penso demorar-me num zelo formal. Na verdade, tem algumas concavidades onde dobro os sussurros, registo os olhares, emudeço as gargalhadas e arquivo tudo, sem catalogar.

Assentei-a numa base toscamente arredondada. Essa aparência abrupta representa a genuinidade de uns dedos principiantes nestas lides artísticas. Em toda ela não há superfícies lisas para que, no fim, as tuas certezas não escorreguem. O aspecto granulado é para que nunca te esqueças que um daqueles pontos poderá prender-te, por instantes, em lembranças reservadas e exclusivas.

Não penso decorá-la com motivos triviais. Talvez faça um risco incisivo na diagonal e em sentido ascendente. Essa será a minha marca.

Entretanto tomas os meus braços cansados como teus e, nessa confusão de mãos entrelaçadas, parece que as forças dos meus dedos se prendem à escultura inacabada com o propósito de a continuar.

Então, os teus lábios tocam a palma rugosa da minha mão semi-cerrada e dou por terminado o trabalho desse dia.

Quando me surpreendes nesse momento em que se desenha um sorriso vago, estou de frente para a escultura, orgulhosa. E sou feliz porque sei que tu percebes que estou a olhar para aquilo que deixei em ti.

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