Contagens decrescentes

04:05


Há dois ou três dias que a solidão voltou, essa antiga companheira de estrada, que sempre fez questão de ser uma constante fiel na minha vida. Não lhe escrevi cartas nem fiz telefonemas urgentes a meio da madrugada, ou quando as fraquezas não encontram esconderijo, a pedir que regressasse. 

Ela nunca me permitiu ser feliz e só na sua ausência percebi que era possível. Não queria que ela se instalasse em definitivo. Embora se apresente como hóspede, tenho pânico que seja como aqueles parentes distantes que um dia se acomodam em nossa casa por tempo indeterminado. 

Sei que os dias vão voltar a pesar-me pelo vazio, vão tornar-se insuportáveis. Fazem-me lembrar aquele ano terrível, em que despertava nas manhãs frias de lá de cima e pensava de mim para comigo, para me convencer da minha força e da minha resistência, que já faltava menos um dia. Aliás, vejo agora que passo anos em contagem decrescente para coisa nenhuma, para o ponto zero. 

Como uma sombra, lá está ela. Não há maneira de fazê-la entender que a odeio simplesmente. Ela faz com que sinta todas as minhas acções inúteis e sem qualquer nexo. Ela faz com que perca o que de melhor pensei construir de mim. Ela esgota-me o potencial que os outros dizem que possuo. 

Ela abraça-me nas noites longas e penosas. Ela acena-me e eu viro-lhe costas, mas ela persegue-me até que eu a olhe de frente. E há em mim, exausta e angustiada, um desespero gigantesco por não saber como me livrar, de vez, dela. 

Anteontem, reconheço-o, foi só mais um daqueles retrocessos cíclicos, que julgava já ultrapassados. Ela traz amigos com os quais não simpatizo, mas com os quais sou obrigada a conviver. Ela faz questão de tornar públicos os meus segredos, os meus medos, as minhas perdas, os meus sonhos interditos. Eles, os amigos, sorriem por piedade. Nas minhas costas, ela ri-se com eles. Ela prefere o destino. Os dois podem brincar com tudo, sem que ninguém lhes ralhe ou lhes imponha um freio.

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