Diversão subtraída

14:01

Decibéis nos píncaros. Temperatura a escalar o mercúrio. Multidão fumegante, frenética e acalorada. O espaço considerável torna-se exíguo para tantos corpos apertados, que vão conquistando espaço para se agitar ao som da música. Lufada artificial de ar fresco. Copos a bater sincopados no balcão. Sorrisos, reencontros e acasos também.

Subo as escadas, com o pensamento adormecido e o corpo a exigir água. Muitas dificuldades na passagem, sobretudo por causa dos imbecis que escolhem os degraus para acampar como se de uma vitrina sem vidros se tratasse. No sentido contrário, vem ele cambaleante. Camisola escura, sorriso largo, bengala na mão. Ninguém se desvia, ninguém se apercebe, ninguém a partilhar daquele universo de escuridão (e sem luzes psicadélicas) a tempo inteiro.

Passo por ele, porque só no momento em que nos cruzámos é que me apercebo também. Subo dois degraus e paro. Rapidamente, volto-me na sua direcção e vejo-o desorientado, na direcção do muro artificial que ali colocaram. Sem pensar, aproximo-me dele. Toco-lhe no braço e desvio-o. Sorriu, mas preferi não encarar. Larguei-o depois, no meio da multidão da pista de dança. E pensei na inutilidade do meu gesto ou até mesmo se ele não o entendeu como despropositado.

Fui à minha vida. Segui o meu caminho, mas com este episódio presente na cabeça. No regresso olhei para os meus amigos de uma forma diferente. Fiquei feliz por ter o privilégio de os ver, de conhecer as cores dos seus olhares, as matizes das suas expressões, os gestos à distância do toque. E, em simultâneo, voltei a pensar nele.

Não lhe sei o nome nem tão pouco a proveniência, a idade ou a história de vida. Nem me interessa. Sei apenas que ele está impedido de uma sorte quase natural. Posso palpitar-lhe a solidão das sensações e a procura das emoções colectivas que supostamente acontecem nestes espaços nocturnos.

Um pouco mais tarde, volto a cruzar-me com ele. Desta vez, vem na direcção do grupo que está comigo. Afasto-me para o deixar passar. Penso novamente se fiz bem ou mal. Talvez ele até queira esse contacto da multidão, talvez ele até vá ali para concretizar esse desejo de passar despercebido, de se imiscuir na escuridão.

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