Referência perene

18:08

Depois de tantos anos, voltámos a reatar o contacto perdido. Foi assim: quase que por instinto do acaso. Pusemos cobro ao convívio interrompido por força de circunstâncias conjugadas a desfavor.

A cada encontro, revejo-a naquele jeito singelo de quem anda de mãos dadas com a vida, sorrindo e chorando com o mesmo grau de resignação. Ouço a mesma serenidade na voz, combinada com os gestos pacientes de quem outrora soube educar sem gritar, sem impor, sem decretar.

Há também laivos de nostalgia por esses tempos em que os cabelos brancos ainda não existiam, em que as debilidades físicas eram desconhecidas, em que os dias se pintavam de todas as cores no caminho entre a sala de aula e o recreio.

Hoje, a lembrança da escola deve ser mero rascunho da realidade. Porém, é desnecessário comprová-lo. Afinal, podemos conjugar no pretérito perfeito tudo o que lá vivemos, sem vontade de actualizar os registos visuais.

Havia uma muda admiração. De parte a parte, creio. Nas nossas percepções, mudava apenas o tamanho do corpo e a intensidade da energia. Se por um lado, eu projectava a ambição de ser como ela. Por outro, ela gostaria de me ver crescer sem largar o que já tinha.


No fundo, tudo se resume a gratidão. Ela sempre serviu como um exemplo vivo das palavras bonitas que dizem às criancinhas sem a preocupação de as concretizar. Todos desenham um mundo cor-de-rosa, mas depois (por esquecimento ou insegurança) não entregam os lápis de cor, afiados e com pouco uso.

Mais do que aprender a escrever, a ler ou a contar, descobri a ética que devia pautar os dias. Com ela, aprendi o valor do respeito por todas as pessoas. Independentemente das condições socioeconómicas, das ocupações profissionais, dos traços identitários, cada ser humano é uma fonte de conhecimentos, que deve ser preservada pela sua singularidade. Com ela, soube que a palavra igualdade se escreve sempre sem que a mão trema em letras maiúsculas. Independentemente de se ser rico ou pobre, limpo ou sujo, instruído ou analfabeto, preguiçoso ou pró-activo, cada ser humano é merecedor de um tratamento igualitário.

Mais tarde, percebi que a lição tinha sido ainda maior. Aprendi também a ser tolerante; a apostar no diálogo, aberto e frontal, como a melhor arma para resolver qualquer tipo de conflito ou para levar a bom porto as diligências; a querer conhecer os vários ângulos de uma situação; a gostar de ler tudo o que me rodeia; a distinguir o essencial das roupagens; a sublinhar o erário das relações humanas. 

Soube que nem sempre resolver as coisas à minha maneira era a única forma correcta e percebi ainda o que nos une. É essa filosofia que faz de nós pessoas melhores, é essa saga que se vive nas entrelinhas das vivências, é essa cruzada interior (e não declarada) num mundo hostil.

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