Homicida

11:47

A noite corria morna e, dentro do café, o fumo misturava-se com o relato de futebol que se desprendia do televisor e com os aromas vertidos para a chávena. Ele estava sentado, na mesa do canto, a poucos metros do balcão, de olhar posto no ecrã.

O outro entrou, bem-disposto e de passo ligeiro. Dirigiu-se à empregada e pediu um café curto. O barulho da máquina a ensurdecer a abordagem provocatória. Mexe o açúcar, de pé, de costas voltadas para a televisão e mal se apercebe da aproximação dele.

O diálogo é expedito. Não há tempo nem paciência para tolerar palavras insultuosas, mas ele não pára. Ali, dois corpos, junto ao balcão, à margem da concentração dos ânimos futebolísticos. Bola para fora, reclama-se penalty, árbitro tendencioso.

E a verdadeira disputa trava-se entre aqueles dois homens, sem haver motivos. Sorvido o café quente, vira costas e afasta-se dele, dos comentários dele, da insolência dele. Quer tão-somente regressar ao escano da cozinha, na casa da mãe.

Caminha na direcção das fitas que caem do aro da porta. Despede-se com “boa noite, meus senhores”. E, imediatamente atrás, o outro continua a ripostar, sem se fazer ouvir, sem se fazer notar. Já na rua, sem o barulho da televisão, ouvem-se os gritos.

Mas dirige-se para o carro, sem sequer olhar para trás. Ele, enfurecido, humilhado, raivoso, não lhe perdoa a afronta. Deixa-o sentar-se e bater a porta do carro. O vidro aberto permite-lhe enfiar a mão e carregar quatro vezes, sem intervalos, no gatilho.

O outro sucumbe, sem resistência, sem tempo para desconfiar do que lhe podia acontecer. A cabeça tombada sobre o assento do lugar do acompanhante. O sangue a manchar os envelopes das contas da água e da electricidade.

Nessa noite, já não ligou aos filhos. A mais nova tinha um exame final, mas morreu sem saber como tinha corrido. Morreu sem ter consciência que ontem foi a última vez que ouviu o tom matreiro do filho, no outro lado da linha.

A vida golpeada irreversivelmente. Sem despedidas, sem lamentos, sem abraços, sem lágrimas. Debruçar-se-iam sobre si, mais tarde, incrédulos com o sucedido, revoltados com tanta crueldade de uma pessoa praticamente desconhecida.

Houve muito pânico dentro e fora do café, enquanto ele consumava a sua frivolidade. De olhar calmo e altivo, sem mostrar arrependimento, foi detido. Mais tarde, houve muito silêncio no átrio, enquanto se aguardava pela entrada na sala de audiências.

Não havia bancos vazios nem rostos brandos. Ao centro, de costas voltadas, estava ele, sentado, à espera de ouvir a sentença. Ao fundo, a mulher e os filhos, sentados, na esperança de não ouvir o pior.

Mas, afinal, que será o pior para eles? Ver o marido e o pai condenado a 20 anos de prisão ou vê-lo regressar a casa dali a meia dúzia de anos? Será que o amor pode resistir nestas circunstâncias? Ou será que a vergonha esmigalha o orgulho de se ser do mesmo sangue?

Aquele homem matou, serenamente, outro homem. Sem quase o conhecer, sem pensar nos que lhe eram próximos, sem revelar qualquer sentimento de culpa ou de desespero. Aquele a quem decretou o final da vida tinha família, colegas de trabalho, amigos, conquistas feitas, sonhos por concretizar. Tudo extinguido a seu bel-prazer.

Para ele, o resto da vida será coado pelas frinchas de uma janela de ferro, longe do mundo e votado ao esquecimento.

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