Meninices

05:09

O balcão servia-lhe perfeitamente para medir a sua altura. De braços sobrepostos e estendidos, conseguia pousar as mãos no balcão. Vestido de vermelho e absorto do movimento à sua volta, não despegava o olhar da televisão colocada tão lá em cima.  

Motivo: desenhos animados, disformes e barulhentos, coloridos e imparáveis. E ele ali estava, de pé, completamente imobilizado, com os olhos a acompanhar cada movimento e os ouvidos a registar cada som até ao ínfimo. 

Todo o frenesim do entra e sai do café e toda a atmosfera de gargalhadas, pedidos e discursos elevados lhe eram indiferentes. E até a voz maternal a sugerir que se sentasse lhe passou ao lado. Nada nem ninguém o retiraram daquele maravilhoso encantamento.

imagem retirada da Internet

Naqueles instantes, invejei-o. Tal como ele, queria fixar-me em algo e alhear-me do mundo. A idade acaba por nos obrigar a desaprender e esquecer como se faz. Nele morava uma tranquilidade absoluta, uma despreocupação plena, uma simplicidade hermética.

Observo-o descaradamente. Tem uma expressão facial indecifrável. Será que imagina qual será o desfecho da história? Será que se revê naqueles heróis? Será que sente medo ou entusiasmo com as corridas e as peripécias que se desenrolam no ecrã?

Talvez... A única certeza que me permite perceber é que não se preocupa com o calor, com a comodidade do corpo ou com as moscas pousadas no boné. Reparo nas tatuagens dos braços, daquelas que vinham no invólucro das chicletes e demoravam dias a sair, mesmo depois de muito esfregar a pele.

E, naturalmente, vejo-o como um felizardo merecedor: ainda não sente o tempo nem as urgências que os adultos criam constantemente, ainda se permite a imaginar sem limites e focar a sua atenção exclusivamente naquilo que gosta. 

Quando conseguir pousar os cotovelos no balcão, tudo será bem diferente.

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