Lutos desrespeitados

02:32

Batem à porta. Às vezes, com insistência. Perguntam pelo dono da casa ou por familiares. Conseguem permissão para entrar. Fazem-no quase a medo como se pisassem terreno minado. São recebidos com uma estranha simpatia. E instalam-se, sentindo-se desconfortáveis. Por momentos, querem sumir-se no ângulo morto mais próximo.

À sua frente, todas as fragilidades possíveis do ser humano. Dentro de portas, há incredulidade e desespero partilhado. Eles acabaram de saber que perderam para sempre entes queridos. Têm os olhos avermelhados, a pele facial húmida, as mãos nervosas, o coração ferido a bater num corpo dormente. São amparados por abraços.

Silenciosos e lacrimejantes, encaram os recém-chegados. Não há hostilidade nos seus olhares. Talvez, lhes peçam, intimamente, que as suas bocas se movam para dizer que houve um terrível engano, uma confusão de identidades e que, afinal, tudo ficará bem, tudo voltará a ser como antes.

Mas desenganam-se rapidamente, quando os recém-chegados apresentam condolências para, logo de seguida, escarafunchar as suas histórias biográficas. Falam já no pretérito imperfeito, quando a dor se conjuga no gerúndio.

Querem saber como eram, o que faziam, com quem se relacionavam e quais os planos ou as acções para aquele que se desconhecia como o último dia. Fazem pausas rápidas entre a torrente de perguntas, mas esperam respostas alongadas.

A dor tolda-lhes o discernimento e revelam tudo o que devia ficar sepultado: os gostos, as habilidades, as traquinices, as conquistas, os medos, os afectos, os sonhos. Conhecem-nos por causa de circunstâncias trágicas, nunca se cruzarão e, de peito esfarrapado, reconstituem memórias íntimas.


Talvez busquem algum consolo para si ou uma espécie de glorificação final para aqueles a quem nunca mais puxarão o cobertor nas noites frias. Mas essa canonização numa folha de papel é tão efémera quanto desrespeitosa para quem, em vida, sempre velou a intimidade.

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