O rosto que não quero ver envelhecer

04:33

Do outro lado da vidraça sei que a manhã já é crescida. Conto as filas dos dedais de luz no topo da persiana. Percebo que uma das pontas da cortina dormiu sobre o parapeito de mármore. Subitamente, ouço-lhe os passos no corredor silencioso. Sorrio em antecipação.

Dentro de instantes, verei o rosto que não quero ver envelhecer.

Ele ri-se sempre com essa expressão de quem abre a porta a um amigo de infância. Ele ri-se sempre com um brilho no olhar, como que na expectativa de vê-lo reflectido no(s) destinatário(s).

O rosto dele é sereno a maior parte do tempo. As pressuposições, os pensamentos, as preocupações, os pressentimentos ficam sempre por detrás desse sorriso desprevenido. A postura perante os dias é de um positivismo premente.

Aquele é o rosto que sabe como encorajar.

A prioridade da partilha vai para a tranquilidade desse rosto perante o imprevisto, o menos bom, o melhor. Nesses momentos, sinto que o nosso entendimento é simétrico.

Ontem, quando caminhava pelo passeio estreito, na direcção contrária dos carros que passavam à minha direita, reparei, de relance, num senhor de boina verde escura e cabelos brancos. Corria para segurar uma bola muito usada com o pé direito. De seguida, chutou-a para o menino. Pensei em ti. Talvez essa seja uma imagem reeditada no futuro. Talvez tenha medo dessa perspectiva.


Não quero conhecer-te os cabelos brancos, nem as rugas, nem os braços enfraquecidos, nem as dores de costas, nem a falta de paciência. Não quero ser obrigada a reconhecer-te nessa velhice.

Quero ouvir essa voz viva e bem-disposta. Quero ouvir esse entusiasmo quando contas uma história qualquer para me roubar uma gargalhada ou para me ouvir resmungar. Não estou preparada para que algum dia deixe de ser assim. Tu és o rosto que não aceito ver envelhecer.

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