A carta que não escrevi

15:55

Na sua voz de menina sem idade, partilhou palavras que lhe sobraram das vivências. Sem tropeçar na memória, entoou a carta que nunca escreveu... Escutei-a, verdadeiramente encantada.

Sim, eu gostava de ter vivido nesse tempo em que os afectos se desdobravam em caligrafias aprimoradas e o amor repelia a superficialidade para exigir tempo, sinceridade, entrega, criatividade, enlevo. 

No seu rosto serenado, descobri-lhe um sorriso a espreguiçar-se pela sombra dos olhos. Com naturalidade, proferiu cada palavra como se a sentisse, no mais fundo de si. Observei-a com admiração.

Sim, eu gostava de ter vivido nesse tempo em que uma carta se guardava como a memória viva dos olhares e dos beijos trocados, como registo imutável e perene do que ficou dos amores não vividos.


Numa outra ocasião, pedi-lhe que repetisse "a carta que não escrevi" para ter a certeza que jamais a esqueceria:

Nesta palavra "saudade",
Tão pequena em tamanho,
Antes que eu queira não cabe
Toda a saudade que eu tenho.
Era da minha vontade,
Escrevê-la vezes sem fim,
Mas, embora mesmo assim,
Eu não te diria metade
Do que eu sinto saudade
Quando estás longe de mim.
Fiz um rascunho e rasguei
Não sei escrever-te, não sei
E amor? Esse nem me atrevo
Embora ficasse bem.
É linda mas não a escrevo
Para que tu não a escrevas também.
Nas cartas que tu me mandas
Com quatro letras apenas,
Vê lá que simplicidade,
Só amor e saudade
Palavras tão pequenas para dizer
Coisas tão grandes, que eu sonhei
E não sei como escrevê-las, não sei
Nas cartas que comecei,
Não sei escrever-te, não sei.
Também quis mandar-te um beijo
Eram cinco letras só
Era apenas um desejo,
Mas o beijo metia dó
E nem um beijo para ti,
Que chegasse o meu afecto,
Podia caber aqui
Mas não chegava o alfabeto
Nem que fosse de A a Z,
Quanto mais de B a O
E mandar-te um beijo para quê?
Se eu não dava nem um só
Nas cartas que comecei
Não sei escrever-te, não sei
Mas não bastam palavras para seres 
Assim tão mesquinho
Cartas minhas, não as abras
Não as abras, que é um anseio,
É mandar-te por correio,
Um coração inteirinho
Mas não fiques em cuidado
Que se perca um coração.
Levo o teu nome gravado
E a tua direcção
E sabes porque eu as mandei
Não sei escrever-te, não sei.

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