Desocupados absolutamente lúcidos

15:56

Eu, aqui, pego na caneca vazia e caminho para a cozinha. Seguro-a com dois dedos apenas, pela asa. Fica meia suspensa entre a certeza que não a deixarei cair e a fragilidade do material de que é feita.

Tu, aí, afastas os lençóis e sentaste na borda da cama à procura dos chinelos. O frio do soalho embate na planta dos pés, sentindo o desalento dos passos por dar.

Ambos sabemos que o pior de não ter trabalho é nem tanto a independência que ambicionámos, mas a frustração de nos sentirmos incapazes de lidar com tanto tempo disponível.

Parece que, de repente, nos roubaram de forma impiedosa e ficámos de mãos vazias e braços enérgicos. Não há motivos para abraçar o mundo feito pelos outros, mas também não existe vontade para nos debruçarmos sobre o nosso. Perdemos a paciência por tudo e por tão pouco.

Vivemos numa utópica esperança de voltar a ser, como antes. Naquele tempo em que 24h se esgotavam e não fazíamos tudo o que queríamos. Naquele tempo em que os objectivos se sobrepunham aos desejos e aos caprichos. Naquele tempo em que não sentíamos cansaço ao acordar.


Não sabemos como voltar ao que um dia já fomos, mas fazemos fé no contrário. Queremos recuperar essa força com que nascemos e que, paulatinamente, ledo e indiferente, o presente foi amortalhando.

Na lucidez irrepreensível, desejamos que o mesmo presente molde os nossos caracteres para adaptá-los aos dias de hoje. É necessário maior frivolidade, objectividade, calculismo, desapego.

Eu, aqui, tenho saudades dessas roupagens com cheiro a naftalina que usámos para combater o tempo que já nos pesa.

Tu, aí, acreditas ainda que vale a pena ignorar alguns capítulos, porque a felicidade pode estar mesmo ali ao virar da página, enquanto o livro não chega ao fim.

Ambos sabemos que estamos condenados a estes grilhões de gostar do que já fizemos, sem conseguimos, simplesmente, rodar 180º.

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