Chris Bingle Esta era a noite combinada ao fim da tarde. Esta era a noite de nos queixarmos do frio e do casaco que ficou em casa. Esta era a noite das conversas adiadas, de ouvir as vozes que o computador emudece diariamente. Esta era a noite de falar de livros, de viagens, de políticas, dos sonhos que soçobram. Esta era a noite...
Há nela uma serenidade tão lúcida como a luz que atravessa a janela para lhe beijar o rosto envelhecido. Caminhamos lado a lado até escolher o canto de uma sala para conversarmos. Falamos baixinho, mas o eco das palavras é inevitável. Em redor, muitos personagens nos escutam, imóveis e silenciosos, pendurados nas paredes. Estamos protegidas dos ruídos da rua, do movimento apressado dos...
Edward Hopper Precisava do cérebro aturdido por uns dias e do corpo subjugado a forças adormecidas. Levem-me essas gargalhadas sem eco e os entusiasmos alheios. Precisava que deixasses o meu braço bem dormente, derrotado e resignado. Calem-me essas conversas pela madrugada e os murmúrios à beira-mar. Preciso que deixem de me assassinar a vontade, aos poucos. E talvez a vida se torne menos...
Combinava-se na escola, entre as amigas, quem tinha a missão de o trazer. Pedinchava-se, depois, em casa. Entre a insistência e a impaciência, conseguia-se a cedência maternal. Lembro-me dela se levantar do sofá, de eu ficar a ver televisão e de vê-la regressar com a cesta nas mãos. Pelo sofá, espalhou caixas de botões multicolores e de diferentes tamanhos, alfinetes espetados numa almofada...
O mundo é redimensionado à escala de um brinquedo que, facilmente, agarro com os dedos. A inutilidade dos dias desvanece-se com as tuas piadas certeiras. As ambições voltam a fazer sentido perante as tuas palavras encorajadoras. A tristeza dá tréguas quando fico debaixo do teu braço, só por uns instantes. Quero ter o teu ombro sempre por perto, sempre desocupado. E serei egoísta quando penso assim?Imagem...
Lança um olhar largo sobre o mundo que a rodeia e não encontra um lugar onde a alma possa pernoitar. Há fagulhas nostálgicas que, atabalhoadamente, se apressa em enterrar. Ela ostenta um sorriso enganadoramente sereno e empenha-se nessa diligência, fugindo aos olhares inquisidores. Ikenaga Yasunari Vive desprendida, imersa numa angústia embrulhada em ruídos. Longe de si, procura o distanciamento emotivo. Retoma o esforço...
Ela é tão pesada como o silêncio dos funerais. Aparenta um formato arredondado para esconder as arestas. Ela é intrusiva como as perguntas indiscretas daqueles que se julgam serem-nos familiares. Desliza como água e move-se como sombra. Sem darmos conta, está atrás de nós, ora projectando-se sobre os nossos olhos, ora perseguindo os nossos passos incautos. Ela é tão arrebatadora como os aplausos...
É sempre difícil escrever-lhe. As palavras enroscam-se sobre si mesmas e parece que não significam exactamente aquilo que significam noutras circunstâncias. E teimam nessa posição defensiva, obrigando-me a procurar sinónimos. Depois, construo as frases e apago-as quase de seguida. Nem preciso de ler para confirmar que não me interessam. Será que elas não compreendem que estão erradas? Estão transformadas numa amálgama de letras...
Vi-lhe o cabelo preto a cair sobre o rosto de menina. A expressão desembaraçada perante o lance de escadas que tinha pela frente. Nos dois braços carregava vários livros. Tinham lombadas finas e capas coloridas. Ela usava um vestido vermelho, com folhos. Esperei que, atrás de si, viesse irmã ou irmão, pai ou mãe, mas não apareceu ninguém. Observei-a, com admiração. Percebi que...
Vicent van Gogh Regresso aqui sem ti e pesa-me ainda mais a tua falta. Ficaram aqui, nestes bancos de um vermelho envelhecido, as nossas gargalhadas livres. Talvez para sempre. Embora ainda encontre os ecos, estão cada vez mais longínquos. Era bom quando as inquietações, os desabafos, as lamúrias e as tristezas eram partilhadas de viva voz. Muitas das quais, aqui mesmo. Era bom...
O despertador parece ter trocado as horas. Ao erguer madrugador segue-se o pequeno-almoço reforçado para aguentar a jornada de trabalho. Aprecio toda a azáfama em torno do carregar dos baldes, do verificar se tesouras e facas estão bem afiadas, da definição do percurso, da distribuição do pessoal. Por fim, vergada sobre as cepas, contemplo o esforço do homem que, dia após dia, vigiou de...