Eles já protagonizaram o mesmo enredo inacabado, já cruzaram os quotidianos, já acreditaram em promessas mútuas, já partilharam a mesma cama, já apostaram na certeza de uma vida em comum. Quando o sol nascia sorridente ou o dia era de nevoeiro cerrado, eles mantinham-se bem-dispostos, sentindo o mundo na palma da mão. Se o trabalho era angustiante e os problemas pareciam um contínuo,...
Sabes? Tenho saudades nossas. De quando éramos mais novos e discutíamos sobre futebol. De quando corríamos na direcção das coisas que queríamos, sem medo de as alcançar. De quando tentávamos vencer nas quezílias da vizinhança. De quando cometíamos inconfidências recíprocas. De quando desconhecíamos que, um dia, teríamos que resumir a nossa amizade a encontros pontuais, esquivos, quase semianuais. Hoje admiro-te, sobretudo por teres...
Os pés inquietos, debaixo da secretária de anos. O relógio a morder-lhe o pulso magro. Arruma a papelada, sem problemas de consciência pelo trabalho necessário que ficou por fazer. Desliga o computador, o seu mais recente camarada de ofício. Esgotam-se os cinco minutos para o passaporte da liberdade. Lá fora espera-o uma missão mais forte e útil do que este contributo diário à...
As turbulências podem ser muitas. Os ventos podem soprar ferozes. As embarcações podem revelar-se frágeis. As coordenadas podem estar incorrectas. Os ancoradouros podem até não passar de miragens. O importante é que os companheiros de viagem estejam lá: de braços fortes e coração aberto. É assim que, mesmo perante as ameaças e o medo de não conseguir sobreviver aos sobressaltos, se vive em...
Encaro-te falsamente. Olho-te de frente e, simultaneamente, desvio-me. Há nesse contacto próximo uma miscelânea de suporte tão inconscientemente perversa como dissimuladamente sincera. Retaliamos diálogos em tom monocórdico, tentando descartar qualquer sombra de envolvimento. Entre nós, as partilhas ficaram incompletas na maioria das vezes. Por isso, há esta comunicação de adro de igreja. Detestamos os rumores e o seu contágio. Não me importa quem...
São 9h30 quando enfia as chaves na porta do escritório. Passeia a pança enquanto carrega o portátil. Segue sem que alguma inquietude lhe belisque o pensamento. Todos os dias, faz o mesmo percurso. Há anos que vive no conforto dessa linearidade. Ao fundo da encruzilhada de corredores, há energia pontapeada contra a bola. O corpo de menino a expulsar uma vivacidade contrária. Às...
Sentes os passos a quebrar a distância. Ouves o som minimal da planta dos pés a libertar-se da areia. Pressentes o contacto em breve. E ficas quieta, muda, embevecida. Não te tocam as palavras nem as ondas mansas. Os dedos ficam entrelaçados na geografia da outra pele. E nessa leitura de texturas, tacteias as linhas vincadas e as feridas suturadas. ...
Revestem-se de normalidade aquiescida,Atravessam-nos como um vendavalNaqueles finais de tardes acaloradosE levam-nos a assertividade.Surgem por acaso e tornam-se camaradas,Mas daquelas que fingem lealdade.Depois, vivemos com elas, ressentidas. Mark Shasha ...
As luzes fracas sobre os sofás pretos. O nevoeiro tabágico a dificultar as percepções. Os reencontros intermitentes do fim-de-semana. Por hábito, necessidade ou ritual, marcamos a hora e escolhemos o sítio, sabendo quem vai chegar atraso, quem virá acompanhado, quem entrará despistado. Acabamos por esmiuçar a noite, devagar e com euforia. Contamos os contratempos, ocultamos as evidências, falamos de futilidades, calamos as ausências....
Quando nos voltámos, percebemos a inevitabilidade da manobra de marcha atrás. Nesse cruzamento, deixámos de ter visibilidade para todos os ângulos. Ora era o nevoeiro que espreitava, ora as sombras que te encobriam. Ainda antes de arrancarmos, descobrimos que, afinal, estávamos no mesmo entroncamento. Por nós, passaram novas caras, experiências diferentes, velhos caminhos e a certeza visceral. Voltaríamos a esse companheirismo das entrelinhas. Regressaríamos...