Empurram a porta, às vezes, sem incomodar o botão da campainha. Entram, atrevidos e prazenteiros, como se a casa fosse sua. Testemunham refeições, perturbam a execução de tarefas domésticas, interrompem leves sonos. Contudo, são sempre bem recebidos. E não há técnica de fidelização mais eficiente que esse acolhimento tipicamente transmontano.Van Gogh «Para início de conversa, apenas dizer, que na minha casa havia Nova...
Na escalada dos medos, acompanha-nos a trepadeira dos afectos.No caminho de terra, sujamo-nos com poeira anímica.Na profusão das palavras, ouvimos, com precisão, os ecos de nós.No rol infinito de sonhos, empurramos as forças que falham.Nos dias que nos fogem, temos o coração enredado, aflito até.No remoinho das saudades, ficamos numa ansiedade sem fim.Na cartilha dos desejos, queremos somente cumplicidades.Nos vagares da vida, desejamos...
Quase de repente e sem avisar: o tempo todo à porta. Os dias nascem preguiçosos, com horas entretidas num baile fora de horas.Nessa inércia redobrada, porque partilhada, há também um descanso merecido. Vamos desfiando o tempo, enquanto ele nos desafia a alma, as convicções e periga os sonhos somados. Não há aulas, trabalho, convívios ou encontros a completar o horário por definir. René...
A luz tépida de fim de tarde, cuja silhueta é perturbada pela fina chaminé da padaria, obriga os óculos descerem pela testa morena. A nuvem gigante faz cócegas às que a rodeiam, enquanto o bulício se deixa tocar pelo silêncio.Aqui, poderia muito bem ser o melhor lugar do mundo para se estar neste momento em que o ponteiro dos minutos balança entre este...
O parque está vazio. O tempo escoltou a mudança indesejada. Já não há o riso das crianças a empurrar os baloiços nem o entusiasmo das pernas pequenas a fazer rodar os cavalinhos. Já não se vêem as filas e os atropelos para descer pelo escorrega que já perdeu a cor. Faltam as pernas a crescer com cicatrizes de pequenos arranhões roubados à areia...
Um dia é incontornável. Torna-se urgente arrumar as malas, descarregando nelas tudo o que são memórias desfragmentadas, aprendizagens inconscientes. Um dia é necessário, quase inevitável, abandonar os lugares que percorremos durante algum tempo e afastarmo-nos das suas gentes. Não levamos connosco a sua essência, mas a ilusão de um sentimento de pertença.Nos dias que passam por nós, tornamo-nos nómadas de quartos alugados, habitantes...
Não há qualquer registo de movimento na casa desocupada. Só as parcas mobílias atenuam o eco dos sons estridentes da televisão. Depois do telejornal, desligo o aparelho que se torna meramente decorativo.Ainda não comi e a hora do jantar já passou. Talvez me fique por uns cereais ou um iogurte. Se calhar opto por um assalto à despensa e roube uma lata de...
Encosto-me às notas desafinadas que se desprendemDa fragilidade dos teus dedos esmagada contra a viola.Ao ritmo das saudades, são dissonantes os acordes das recordaçõesE, em uníssono, só as melodias começados com claves de sol.Nesse tropeçar de toques, pressionando as cordas,Tento imaginar-te na partitura dos tempos vindouros.Gostaria de te ouvir em compasso binário,Tocando a felicidade em sustenido. Guache Marques ...
Sim, eu sei que tenho. E tento, de verdade! Pois, ainda nunca consegui, mas um dia serei capaz. Por agora, paro de tentar não pensar.Queria tanto desligar a parte racional do meu cérebro, dar umas merecidas férias à zona analítico-dedutiva e sacrificar a indutiva. Assolam-me as cogitações intemporais sobre as desgraças dos outros e os meus próprios dramas. Inquieta-me a paz absoluta e...
O programa estava definido, ainda que um pouco à toa. Em carteira, a expectativa de reunir os amigos de sempre que já não vemos há muito tempo. Mesmo que esse tempo seja apenas alguns meses.Havia uma declarada intenção de divertimento máximo, comum e tácita. Uma alegria emergente e um olhar curioso a cada frase que contemplava novidades. A distância tem a única vantagem...
Incomoda-me pensar que não sentesO peso do quanto gosto de te olharBem para dentro, espreitar-te com lentesComo se me debruçasse sobre um poço lunarE te tentasse descobrir sem mim,Sem confundir as palavras em uníssono,Sem sentir os gestos multiplicados numa dádiva sem fim.Só para te poder encontrar como um tesouro sem donoÀ procura de si,Apenas assim;Discreto, seguro, secreto,Silencioso, paciente, precioso. ...
De alguma forma, espero pelas respostas que já nem sei se me interessa ouvir. Sinto-me a perder as rédeas da motivação. Quanto mais percorro, mais conheço e menos me consigo envolver.No outro dia, a frase que encaixou na perfeição: “o que não sabemos não nos afecta”. E eu nunca desejei tanto ser completamente ignorante do que me rodeia, dos mecanismos rebuscados em que...
Se pudesses sentir o peso das suas pequenas e robustas mãos, perceberias as rugas discretas deixadas pela dor emprestada.Se pudesses ouvir o seu silêncio mascarado pelas palavras sopradas com naturalidade, conseguirias compreender o alcance do intransmissível.Se à sua volta construísses uma fortaleza com os teus braços, proporcionar-lhe-ias uma felicidade fictícia, romanceada nessa realidade de instantes.Só que não podes tocar sequer os seus contornos...