Hoje, apetece-me escrever-te. E faço-o com a mesma fúria dissimulada do momento em que peço o livro de reclamações em repartições públicas. Hoje, apetece-me escrever-te com letras arredondadas e em maiúsculas para que não haja dúvidas de que a minha desilusão não se fica apenas pelas entrelinhas. Hoje apetece-me escrever-te sem reler o que está para trás. Pode ser que, assim, percebas que cada...
Este é um gesto largo, profundo, bem dimensionado em toda a sua generosidade. Este é um gesto intencional que brota do carinho mais puro que cresceu em nós desde que tu lançaste as sementes. Este é um gesto simples, discreto, sincero. Não espera aplausos, reconhecimentos, olhares de admiração ou vagas de emoção. Este é um gesto partilhado, absoluto, íntegro, sentimental. É um gesto...
...
Os pés ficarão deliciados à beira da lareira. Os serões serão alongados, cúmplices do mutismo da televisão e do crepitar da madeira. Os livros vão abraçar mãos ávidas. As refeições serão em família, testemunhando a sabedoria maternal de combinar temperos para saciar apetites. A bicicleta arrumada solicitará utilização. O telefone tocará para trazer palavras doces do outro lado da linha. O sótão deixará...
Voltas atrás, com pressa, aborrecido por perder tempo. Queres muito seguir por esse caminho esburacado, rumo a essa casa multicolor que imaginas. Levas contigo o essencial para as travessias: entusiasmo e vontade de descobrir, de conhecer, de gostar. Mas será que vais conseguir ficar? Observarás e sentirás a indiferença perante a tua presença, perante os teus receios, perante os teus objectivos. Afinal, és mais...
Sylver Foust Não preciso de percorrer cabides ordenados ou remexer em caixas de cartão. Sei bem qual o tamanho e a espessura ideais. O perfume, a cor e a textura mantêm-se as mesmas, indiferentes à substituição das estações do ano. Atiro-te com ele ora com ansiedade, ora com meiguice. Parece-me que as duas formas te assentam bem, mas conheço essa preferência por um...
Amarelecidas e cansadas, as folhas despedem-se dos ramos esqueléticos da árvore. Algumas formam um tapete com remendos cinzentos à volta do tronco, outras espalham-se por esse banco solitário. Vejo-te ao longe e deixo-me ficar a apreciar a cadência dos teus passos. Quando te aproximas, leio-te a mágoa causada pela minha ausência. Sorrio, a medo. E vejo-te debruçar o olhar mansamente triste sobre o lago....
Um olhar de desdém, no expoente máximo da sua temperatura de cor. Profundo, incisivo, severo. Um olhar que não mostrava nem mágoa nem tristeza nem dor. Um olhar que revelava apenas uma tola decepção. Um olhar perpetrante, sem medo das alegações finais. Um olhar de mera revolta fútil. Do outro lado, um sorriso tímido a disfarçar o desconforto, a mendigar misericórdia a esse...
Enfurecido, o vento assobia na rua. Habitual, o frio cola-se às paredes interiores da casa. Previsível, a geada cairá de madrugada. Sobre a mesa repousa a caneta e o papel permanece intacto. Esta é a noite de deixar o computador desligado e cumprir com essa tradição cada vez mais antiquada de escrever postais com aroma natalício. imagem retirada da Internet Ao início, a...
William J. Jenack Auctioneers Podíamos ter crescido juntos e, então, teríamos peripécias de recreio, brincadeiras infantis e partidas pregadas para evocar. Podíamos ter estudado juntos e, então, teríamos reclamações em comum, professores de estimação e alvos de maledicência. Podíamos ter mais essas histórias na bagagem, mas o tempo encarregou-se de cruzar os nossos caminhos um pouco mais tarde. A primeira piada é agora...
A tarde adensa-se com o frio que tacteia as solas das botas gastas. Aconchegam-se os casacos compridos às golas das camisolas. Apertam-se os botões e puxam-se os fechos. Os pensamentos garantidamente herméticos. Neste lugar, que não é de ninguém, cabem todas as solidões que acenam dos corações cheios. Neste lugar, descoberto no meio de penedos e aragens, só o tempo parece ser o justo...
Os 365 dias do calendário eram passados naquele pequeno lugar que ladeava o seu universo encantado. De manhã, bem cedo, rodava a chave na fechadura e empurrava a porta que o atirava para o mundo dos brinquedos. Aí permanecia até ao anoitecer, envolvido por embalagens coloridas que protegiam os sorrisos de plástico que o abraçavam invariavelmente afáveis. Quem entrava e saia, era brindado...
Manhã nebulosa guardada na lembrança.Dança em silêncio numa madrugada perdida. Éramos feitos dessa certeza, absoluta e absurda,De permanecer livres e sós. Sem nomes, datas ou promessas,A cumplicidade crescia a uma só voz. Fanik Final de tarde sombrio e desagradável.Ficámos quietos, com vontade de amanhecer. Havia encanto nesse olhar cruzado que se demorava,Nesse toque de mãos que não chegava a acontecer. Somos feitos dessa...
A noite precipita-se sobre a tarde. É assim nesta antecâmara do Inverno. A árvore que tenta chegar à janela do meu quarto já se pintou de todas as tonalidades de castanho. Eu prefiro as folhas desse castanho avermelhado, pois reacendem a nostalgia do tempo quente, das emoções a fervilhar, da ternura aquiescida. imagem retirada da Internet Agora que a noite caiu e as persianas...
Os olhos claros, de um azul cor de mar, eram pequeninos e rodeados de rugas. Os seus olhos brilhavam mais ainda quando falava dos filhos. Tinha três, dispersos pelo mundo. Tinha orgulho do que faziam e contava os sacrifícios que, em tempos, teve de fazer para que eles continuassem a estudar. Agora que os dias não tinham sobressaltos, sorria serenamente ao recuperar essas...